Autores: André Mendes Capraro; Natasha Santos; Riqueldi Lise; (Universidade Federal do Paraná) – Revista de História do Esporte
O texto trata de como a identidade nacional foi construída e se mantém a partir de alguns autores como Gilberto Freyre, Nélson Rodrigues e Mário Filho, entre outros autores que tratam do tema. “O fim da década de 1950 foi um momento não só de forte intervenção do Estado e de um aparato intelectual legitimando um ideário de brasilidade, como também de consolidação do futebol enquanto um esporte de massa, cuja maior expressão encontrou-se na ‘trágica’ derrota do selecionado nacional na Copa de 1950 e nas vitórias de 58 e 62, contanto com um anticlímax no Mundial de 66 e desfecho heróico na Copa de 70…”
Gilberto Freyre, segundo os autores, após formular a tese central da integração racial no Brasil e o debate intelectual ocorrido nos anos de 1930, passou a usar o futebol como referência como forma de reforçar e exemplificar a brasilidade, cuja identidade nacional seria pautada na miscigenação.
Os autores também salientam a obra de Mário Filho, O Negro no futebol brasileiro (lançamento da primeira edição depois da Copa de 50), onde os atletas negros foram responsabilizados pela derrota do Brasil no Mundial, embora eles destaquem não ser essa uma opinião consensual. “… em uma pesquisa pontual, mas com elevado significado, Santos e Capraro (2010) investigam tal afirmativa e, por amostragem, puderam concluir que essa crítica de cunho racista por parte da imprensa não se confirma” (p.4).
No entanto, segundo percebe-se, Mario Filho não perde o reconhecimento como um dos mais importantes pensadores e jornalistas esportivos do país. Apoiado pela teoria de Gilberto Freyre, as suas idéias acabam perpetuando até hoje. Os autores lembram o papel dele para a crônica especializada se consolidar e também no embate que se teve para a profissionalização do esporte.
Os autores mostram que Nelson Rodrigues segue os passos do irmão Mario nesta concepção inspirada em Freyre:
Amigos, vocês se lembram da vergonha de 50. Foi uma humilhação pior que a de Canudos […] não me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe entra em campo com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio – é como se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas. Pois bem. Depois da experiência bíbilica de 50, passamos a rosnar, por todas as esquinas e por todos os botecos do continente, o seguinte juízo final sobre nós – “o brasileiro é bom de bola, mas frouxo como homem” (Rodrigues, 1993, p.103)
“O fracasso na final da Copa do Mundo de 1950 seria uma marca permanente na concepção de identidade nacional, ao menos aquele esboço apresentado em O Negro no Futebol Brasileiro, consequentemente, também nas crônicas dos irmãos Rodrigues. Embora houvesse sutis diferenças: o ressentimento de Nelson Rodrigues em relação ao evento foi motivador para a criação da sua teoria do ‘complexo de vira-latas’ em relação ao povo brasileiro (embora o mesmo viesse a admitir que tal complexo surgiu da própria imprensa incrédula)”, dizem os autores do texto. Ressentimento que era menor quando se tratava do texto de Mário Filho
Descobriu-se que o jogador brasileiro tremia em 54. Em 50 não se falou de tremedeira, falou-se em coisa pior. Chegou-se a dizer, com o exagero, aliás natural, da coro da derrota, que o jogador brasileiro era covarde […] Apesar disso, de vez em quando se estabelece uma grande confusão, que precisa, o mais rapidamente possível, ser desfeita, para o bem de todos nós. Mistura-se 50 e 54 e tanto se diz que o jogador brasileiro treme como é covarde. (Rodrigues Filho, 1994, p.198)
“Neste caso, a “invenção de uma tradição” (HOBSBAWN E RANGER, 1997) acerca da derrota de 1950, criada pelos irmãos Rodrigues, consistia em dois pontos distintos. O primeiro era a demarcação do início do enredo clássico: começa com uma dificuldade (a derrota vexatória em 1950) que, após muita dificuldade (a Copa de 1954), culminaria com a redenção no desfecho, com as seguidas vitórias nas Copas de 1958 e 1962 – sendo ainda possível estabelecer uma continuidade neste enredo com a derrota de 1966 e a derradeira vitória em 1970… O segundo ponte seria uma espécie de alerta, usando sempre que o selecionado era derrotado ou estava na iminência de ser.” (p.6)
Os autores também identificaram que José Lins do Rego, ao contrário de Nelson e Mário, que confiavam muito numa conquista em 1950, apresentava sérias preocupações com a final. “Amanhã teremos outra etapa, a mais difícil, a mais dura. Teremos amanhã os homens de cabelo na venta, gente disposta a tudo e já experimentada em vitórias internacionais. Rapazes da seleção, aos orientais, que são os mais perigosos” (REGO, 2002, p.124). Tanto que ele escreveu, após a derrota para o Uruguai: “E de repente, chegou-me a decepção maior, a ideia fixa que se grudou na minha cabeça, a ideia de que éramos mesmo um povo sem sorte, um povo sem as grandes alegrias das vitórias, sempre perseguido pelo azar, pela mesquinharia do destino” REGO, 2002, p.125.
Também no texto é utilizada uma crônica de Nelson Rodrigues que fala do irmão, Mário Filho, enaltecendo o que seria chamado de inventor da crônica esportiva moderna.
Até que, um dia, Mario Filho apareceu. Pode-se datar o nascimento da crônica esportiva. Foi quando ele publicou uma imensa entrevista com Marcos Mendonça. O famoso goleiro anunciava sua volta. O patético, porém, não era o fato em si, mas a sua escandalosa valorização jornalística. A matéria inundava um espaço jamais concedido ao futebol – meia página! Era a época em que o esporte vivia empurrado, escorraçado para um canto de página. O melhor jogo do mundo não merecia mais de três linhas.
[…] A entrevista de Marcos Mendonça foi para nós, do esporte, uma Semana de Arte Moderna. Em meia página, Mario Filho profanou o bom gosto vigente até em um jornal de modinhas. Ao mesmo tempo, fundava a nossa língua. E não foi só: – havia também no seu texto uma visão inesperada do futebol e do craque, um tratamento lírico, dramático e humorístico que ninguém usara antes. Criara-se uma distância espectral entre o futebol e o torcedor. Mario Filho tornou-se o leitor íntimo do fato. E, em reportagens seguintes, iria enriquecer o vocabulário da crônica com uma gíria libérrima.
[…] E graças a Mario Filho, o futebol invadiu o recinto sagrado da primeira página. Pouco antes, só o assassinato do rei de Portugal mereceria uma manchete. E, súbito, o grande jogo começou a aparecer, no alto da página, em oito colunas frenéticas.
[…] E, com isso, o diretor, o secretário e o gerente descobriram o futebol e o respectivo profissional. O cronista esportivo deixava de ser o pai da Sônia do Crime e castigo. Começou até a mudar fisicamente. Por outro lado, seus ternos e gravatas acompanhavam a fulminante ascensão social e econômica.
[…] Mas eu não vou contar tudo o que ele fez, porque esse homem não parou nunca. Com seu formidável élan promocional, trouxa para o futebol novas massa. O leitor simples ou mal informado pode perguntar: – “Mario Filho fez tudo?”. Eis a casta e singela verdade: – fez tudo sim, e repito: – tudo. Por sorte de parentesco, fui testemunha ocular e auditiva dessa obra colossal. (RODRIGUES, 1994, p-8-10)
Os autores do texto ainda lembram que a obra de Nelson sempre foi carregada de complexidade e teatralidade. “Para o escritor, as derrotas eram um sintoma nacional. Era da índole do povo se fragilizar, não vislumbrando a possibilidade promissora de crescimento.
O brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. Sim, amigos: – somos uns Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem. Mas certas vitórias merecem um total respeito (RODRIGUES, 1993, P.30).
Os autores do texto ainda identificaram na obra de Nelson Rodrigues as primeiras manifestações sobre o “complexo de vira-latas”:
Eu me lembro daquele personagem do Dickens que vivia clamando pelas esquinas: – “Eu sou humilde!” Eu sou humilde! Eu sou o mais humilde do mundo” […]
Pois bem: – o brasileiro tem um pouco do personagem de Dickens. Eu disse “um pouco” e já amplio – tem muito. Se examinarmos a nossa história individual e coletiva, esbarramos, a cada passo, com exemplos inequívocos e indeléveis de humildade. Por exemplo: – a recentíssima jornada do escrete brasileiro em canchas europeias. Foi algo patético.
[…] De qualquer maneira, não se podia desejar uma humildade mais compacta e mais refalsada.
[…] E, assim, imersos até o pescoço numa vil modéstia lá partiram nossos craques para aprender na Europa. Mas já não constituíram uma equipe briosa, entusiasta, segura de si mesma e dos próprios méritos. […]
Ou expulsamos de nós a alma da derrota ou nem vale a pena competir mais. Com uma humildade assim abjeta, ninguém consegue atravessar a rua, sob pena de ser atropelado por uma carrocinha de Chica-bom . (RODRIGUES, 1994, p.17-17)
A formulação final deste anunciado de Nelson viria, segundo o texto, ao final da Copa do Mundo de 1958, com o início da reversão deste sentimento.
A pura, a santa verdade é a seguinte: – qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: – temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida nossa qualidades. Quero aludir ao que se poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: – “O que vêm a se isso?”. Eu explico.
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, ao futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: – e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples – porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fossemos. (RODRIGUES, 1993, p.52.
Após a Copa de 58, Nelson Rodrigues escreve uma crônica É Chato Ser Brasileiro! .
Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional […] O povo não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: – o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. E já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas. ( RODRIGUES, p.60-61)
Um outro trecho da obra de Nelson Rodrigues alerta para o risco do “esquecimento” dos nossos heróis.
Mas é que o brasileiro não é disso. Sim amigos: – o brasileiro reage ao bem que lhe fazem com uma gratidão amarga e quase ressentida. Que fez o escrete? Deu-nos a maior alegria de nossa vida. Tornou qualquer vira-lata em campeão do mundo. Mas a nossa gratidão logo secou uma bica da Zona Sul. Tratamos de esquecer a jornada estupenda. Mas eu vos digo: – “esquecer” não é bem o termo. Ou por outra: – o brasileiro pode “esquecer” da boca para fora. Mas na verdade um Pelé é inesquecível. Insisto: – apesar de toda a nossa ingratidão, Pelé é imortal. E por isso, porque ninguém pode enxotá-lo da nossa memória, eu promovo a meu personagem do ano. (RODRIGUES, 1994, P.54-55)
Amigos, eu sempre digo que, antes de 58 e de 62, o Brasil era um vira-lata entre as nações, e o brasileiro um vira-lata entre os homens […] Estávamos esquecidos, sim, estávamos desmemoriados do nosso subdesenvolvimento. E, súbito, vem a frustração hedionda do tri. Ontem mesmo, eu vim para a cidade, no ônibus, com um confrade. Súbito, constato o seguinte: o colega babava na gravata. E o pior é que não havia , ali, à mão, um guardanapo. Eu ia adverti-lo, quando descobri que todos, no coletivo, faziam o mesmo. Percebi tudo – perdida a Copa, deu no povo essa efervescente salivação. Repito – pende do nosso lábio a baba elástica e bovina do subdesenvolvimento. E o Otto Lara Resende bate o telefone para mim. Antes do bom-dia disse-me ele: – “votamos a ser vira-latas”. (RODRIGUES, 1994, p. 122)
Os autores do texto consideram que Nelson registrava bem essas lapsos de vira-latismo, mas que também elegeu uma referência em sua forma de retratar a identidade do brasileiro, a partir do que ele não era. “Assim, elegeu o europeu como extremo oposto ao brasileiro, possivelmente por ser o continente no qual se encontravam os principais adversários no futebol e por ser referência, sob a égide da civilidade, que predominou nas primeiras décadas do século XX. O cronista discordava, desta forma, veementemente do posicionamento que, para ele, era típico do povo brasileiro: venerar o estrangeiro como modelo ideal. E, no caso do futebol, sobretudo os ingleses, pois esses eram os criadores da modalidade.”
Segundo eles, Nelson não acredita na superioridade europeia pregada por muitos analistas do esporte. Acreditando no modelo de Gilberto Freyte, entendia que o futebol havia se abrasileirado, ou seja, com as características do homem brasileiro – a ginga, a malandragem, o drible – , únicas no cenário mundial, o selecionado era inigualável.
“Nesse sentido, como contraponto superior ao forte e condicionado povo europeu, emergia o ousado e mandrião povo brasileiro, fato comprovado por meio da comparação entre os jogadores de futebol dos dois continentes. Garrincha era um dos exemplos mais usados por Nelson. Em uma destas menções, o cronista- aproximando muito o conhecido atleta brasileiro do estereótipo de Macunaíma, o herói sem caráter, de Mario de Andrade – relatava com certo desdém ao europeu” […] De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo: de outro lado, feio e torto, o Mané (RODRIGUES, 1994, p79)
Depois da conquista de 1962, Nelson retrata em suas crônicas outra característica inerente ao jogador/homem brasileiro: a coragem. Era um valente já ao nascimento. E através da valentia, adquiria também valores como ética, moral e cidadania.
Ainda o texto traz um trecho de uma crônica onde Nelson Rodrigues faz alusão ao fato do brasileiro, na condição de subdesenvolvido, não saber reivindicar e protestar contra as injustiças. Isso aparece ao final da Copa de 1966.
Amigos, o mínimo que se pode esperar do subdesenvolvido é o protesto. Ele tem de espernear, tem de subir pelas paredes, tem de se pendurar no lustra. Sua dignidade depende de sua indignação. Ou ele, na sua ira, dá arrancos de cachorro atropelado, ou temos de chorar pela sua alma.
[…] Eu vi que a tragédia do subdesenvolvimento não é só a miséria ou a fome, ou as criancinhas apodrecendo. Não. Talvez seja um certo comportamento espiritual. O sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não reconhece o direito de ser vítima.
[…] Oh, meu Deus do céu! Virgem Santíssima! Nós já somos um povo que não faz outra coisa senão perder! Olhem a nossa cara. Reparem: é a cara da derrota; Afinal de contas, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota cotidiana, a humilhação de cada dia e de cada hora? E é uma ignomínia que venha alguém dizer a esse povo desesperado. “- Vá perdendo! Continue perdendo! Aprenda a perder! (RODRIGUES, 1994, p. 126-127)
Mais a frente, outro trecho de Nelson ganha um significado especial:
Perguntará o leitor, em sua espessa ingenuidade: “O brasileiro não gosta do brasileiro?”. Exatamente: – o brasileiro não gosta do brasileiro. Ou por outra: – o subdesenvolvido não gosta do subdesenvolvido. Não temos sotaque, eis o mal, não temos sotaque (RODRIGUES, 1993, p.166)