Um bilhete escrito por familiares de Justin Fashanu e posicionado em uma coroa de flores ao lado de seu caixão dizia: ‘A única certeza é que você está finalmente livre’. Em 1998, o primeiro jogador britânico a se assumir publicamente como homossexual cometeu suicídio em Londres. Enforcou-se. Deixou uma carta de despedida em que negava acusações de ter abusado de um jovem de 17 anos nos Estados Unidos. No texto, afirmava que, por ser gay, jamais seria julgado de forma justa.
Fashanu, de família nigeriana, ex-atacante de clubes como Norwich, Southampton, Manchester City e West Ham, não tinha grandes pretensões de engajamento social. Não tinha sequer perfil para ser um símbolo de libertação sexual – até tentou trocar segredos de sua vida amorosa por dinheiro. Mas acabou se tornando uma espécie de pedra fundamental em uma discussão que ainda engatinha, mas parece em vias de começar a caminhar com firmeza, especialmente em meio à série de polêmicas que envolve os Jogos de Inverno de Sochi: a presença de homossexuais no esporte, incluindo o futebol.
Passados 15 anos da morte de Fashanu, o tabu permanece. Mas está mais frágil. Repetidos atletas, de repetidos esportes, vêm saindo do armário. No futebol, os casos ainda são raros, muito especialmente no Brasil, onde jamais um jogador de renome nacional se declarou gay. A questão é de aceitação, mais externa do que interna. Afinal, como a maioria dos torcedores reagiria ao saber que o capitão, o centroavante ou o lateral-direito reserva de seu time é homossexual?
No Brasil, nenhum jogador dos considerados grandes clubes assumiu publicamente sua homossexualidade. Mas um já teve que se declarar heterossexual. Richarlyson, hoje no Atlético-MG, se viu obrigado a ir a público nos tempos de São Paulo para dizer que não é gay depois de um dirigente do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, cometer uma gafe em um programa de TV. Cyrillo afirmou que o atleta diria que é homossexual em uma entrevista (algo que jamais aconteceu). O dirigente pediu desculpas a Richarlyson, mas a questão acompanhou o jogador ao longo da sua carreira.
Sheik mexeu em um vespeiro onde os demais jogadores brasileiros de clubes de ponta, heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, jamais ousaram mexer. No Brasil, esse papel coube antes a Messi. Mas não Lionel, o Messi argentino: no caso, Jamerson, o goleiro Messi, atleta do Palmeira de Goianinha, no Rio Grande do Norte. Em 2010, ele virou notícia nacional ao se assumir como gay. Não teve grandes problemas depois disso. Hoje, está novamente no clube.
– Você tem que ser o que você é, não esconder. No futebol, isso não é aceito, mas meus times aceitaram com naturalidade. Eu me senti um pouco melhor (depois de assumir). Quem não se assume sofre um pouco. As pessoas precisam ver que você tem uma parte feminina. Declarando, as pessoas aceitam mais. Dentro de campo, é normal as pessoas pegarem no pé. Com o adversário, acontece muito, é bastante normal – disse o goleiro Messi.
O gesto do Messi genérico tem sua dose de coragem. Mas o caminho para um atleta mais conhecido fazer o mesmo parece longo. Ou mesmo um ex-atleta. O GloboEsporte.com procurou dois ex-jogadores conhecidos no meio do futebol como homossexuais. Nenhum deles aceitou participar desta reportagem. Eles alegaram dificuldades profissionais (eventuais prejuízos a uma carreira ainda vinculada ao futebol) ou pessoais para abordar a questão publicamente.
– Compreendo a importância de se discutir o tema, mas entenda que eu não posso fazer isso – disse um deles.
– Nesse momento que vivo, não tenho interesse em falar sobre o assunto – afirmou o outro.
LÁ FORA
O temor é compreensível. Mesmo no exterior, onde a abertura vem sendo maior, o gesto parte de ex-jogadores, não de atletas em atividade. Foi o caso do alemão Thomas Hitzlsperger. No início deste ano, o ex-meia, de 31 anos, afirmou à revista “Die Zeit” que é homossexual.
– Declaro minha homossexualidade porque desejo que essa questão avance no mundo do esporte profissional – disse ele.
Antes dele, um atleta de futebol dos Estados Unidos fizera o mesmo. Mas com uma diferença. Robbie Rogers, aos 25 anos, tornou pública sua homossexualidade em 2013 e automaticamente anunciou que estava abandonando os campos. Depois, mudou de ideia e foi contratado pelo Los Angeles Galaxy. Estreou pelo clube em maio, três meses depois de seu comunicado. Ao ir a campo, foi aplaudido por mais de 20 mil pessoas.
– É um momento histórico – disse ele na época.
Robbie Rogers fez parte daquilo que a imprensa americana identificou como um movimento coletivo de saída do armário no esporte do país. A expectativa era de que um atleta de cada uma das grandes ligas (NBA, NFL, MLS, NHL e MLB) fosse a público e dissesse que era gay. A ação acabou não sendo tão forte assim, mas teve impactos especialmente depois que Jason Collins, do Washington Wizards, escreveu um texto em primeira pessoa para a revista “Sports Illustrated” no qual já começava dizendo: “Sou um pivô de 34 anos da NBA. Sou negro. E sou gay”.
Na Europa e nos Estados Unidos, há uma série de entidades que dão suporte a atletas homossexuais. Funcionam especialmente em duas frentes: dar apoio a esportistas que sofram por não poder assumir sua sexualidade e incentivar aqueles que estão dispostos a tornar pública sua preferência por pessoas do mesmo sexo. Uma das mais fortes é a americana “You can play”, ligada à liga de Hockey, a NHL. Um de seus fundadores, Brian Kitts, se mostra otimista.
– O esporte está preparado para essa mudança. Enquanto a sociedade muda, seja com a liberação do casamento gay ou a indústria do entretenimento, atletas, treinadores e torcedores começam a perceber que há atletas gays. Eles estão prontos para essa mudança. (…) Penso que muitos atletas sairão do armário nos próximos cinco anos, e aí organizações como a nossa serão desnecessárias. A sociedade está mostrando maior respeito por atletas gays.
O interessante é que muitas dessas organizações são comandadas por ex-atletas heterossexuais. Um caso exemplar é a Stand Up Foundation, comandada por Ben Cohen, um ex-jogador da seleção inglesa de rúgbi. Ao ver seu pai ser vítima de violência (foi assassinado), ele decidiu agir. E usou sua fama como esportista e sua imagem como símbolo sexual da comunidade gay (apesar de ser heterossexual) para isso. O ex-atleta compara a luta contra a homofobia com a batalha contra o racismo.
– A homofobia está onde o racismo estava 20 anos atrás – diz ele, campeão mundial de rúbgi com a Inglaterra.
Esses grupos costumam considerar tímidas as ações de órgãos oficiais do esporte. Isso inclui a Fifa, que em seu estatuto fala em punições contra “discriminação de qualquer tipo contra um país, pessoa ou grupos de pessoas de qualquer origem étnica, gênero, língua, religião, política ou outra razão”, sem especificar preferência sexual.
– Esta não é uma prioridade para muitas organizações, e estamos realistas em relação a isso – comenta Brian Kitts.
NO BRASIL
Enquanto o debate se espalha lá fora, no Brasil a discussão segue eclipsada. Parece distante o momento em um atleta de ponta do esporte mais popular do país enfrentará a corrente e se sentirá confortável para não esconder sua sexualidade.
Abel Braga, um dos treinadores mais experientes do Brasil, acredita que um jogador homossexual, se achar importante sair do armário, deve fazê-lo. O atual comandante do Inter, famoso por seu controle de vestiários, entende que um jogador fingir ser heterossexual pode ser mais prejudicial ao ambiente do clube do que se assumir como gay – mesmo que apenas internamente.
– O pior, no meu modo de pensar, é sabermos que tem e o cara não assumir. Por que não assume? É opção dele. No vestiário, se tem e não assume, complica. Não precisa ser publicamente, mas se não assumir no vestiário a coisa vira um pouco para o lado da gozação. Acho que o melhor é o cara chegar ali dentro e assumir. Temos que ter a cabeça aberta com esse tipo de situação. É uma coisa absolutamente normal hoje – opinou o treinador.
Julio Moreira, presidente do Grupo Arco-Íris, atuando há 20 anos em prol da comunidade LGBT, vê dificuldades em jogadores de futebol tocarem no assunto atualmente.
– Há uma cultura machista no Brasil que envolve principalmente o futebol. Existe uma cultura machista que se reproduz até na forma como a gente comemora nos jogos, com xingamentos. Se o juiz roubou, ele é ladrão, ele é veado. A sociedade pensa que é pecado, doença, crime, e isso faz com que atletas que atuam em times profissionais não possam se assumir. Tem o constrangimento que eles sofrem no meio e na torcida e também o reflexo de patrocínio. No futebol, acho que ainda é muito difícil (a pessoa assumir que é homossexual). Claro que tem, mas ele precisam viver se policiando. E é difícil viver uma homossexualidade escondida num ambiente assim – comenta ele.
Não existem números precisos sobre o percentual da população brasileira que é homossexual. No censo de 2010, o IBGE levantou dados sobre a quantidade de uniões homoafetivas (0,1% do total, ou cerca de 53 mil casais), mas não sobre quantos brasileiros se declaram gays – o que dificulta uma projeção sobre o percentual de homossexuais ou bissexuais em um clube de futebol.