Preguinho, craque no ataque da seleção de 30, nunca recebeu um tostão para jogar
João Coelho Netto, filho do escritor Coelho Netto, e que Fausto chamava de Prego, mas a torcida consagrou como Preguinho, foi, ao lado dele, um dos nossos destaques no Uruguai. Capitão do time, o primeiro capitão do Brasil em uma Copa, foi também o primeiro brasileiro a marcar em copas – fez aquele único gol contra a Iugoslávia. Contra a Bolívia, voltaria a marcar, fez dois. Aliás, esporte era com ele mesmo. Jogava também basquete, e foi cinco vezes campeão carioca, de 1924 a 27, e novamente em 31. Foi campeão de atletismo em 25 e de vôlei em 23. Em 1925, em um mesmo dia, nadou 600 metro e ajudou o Fluminense a conquistar o tricampeonato estadual de natação. Saiu da piscina, chamou um táxi e foi para Laranjeiras, jogar contra o São Cristóvão e vencer o Torneio Início. Sua paixão era o futebol.
– Aquela bola de couro sempre me atraiu mais, me dava emoção maior – costumava dizer.
E, ao contrário do que se vê hoje, detestava profissionalismo.
Em entrevista a Márcio Guedes, do Jornal do Brasil, em 1977 ele diria :
-Pode perguntar a quem quiser. Nunca recebi um tostão com futebol, um tostão. Jamais poderia imaginar a prática de um esporte como profissional. Até hoje sou assim. Não sei bem explicar por que … Sou um idealista, um sonhador.
Quando o futebol começou a se profissionalizar no Brasil, lá pelas tantas uma lei foi baixada : um amador só poderia jogar em um time profissional três vezes, depois teria que assinar contrato. Preguinho jogou essas três partidas, em todas marcou gols, e decretou: entre profissionais, nunca mais.
Mas mesmo naqueles tempos, e antes deles, os bons de bola eram cobiçados, e era preciso segurá-los.
Os craques da seleção carioca já recebiam gratificações desde 1915, mas não salários. Era costume dos clubes conseguirem empregos para seus jogadores, como já contou o jornalista David Coimbra em Zero Hora. Craques tinham boca livre em restaurantes, as contas do armazém pagas. O América do rio bancava jantares de suas pratas da casa no Filhos do Céu, badalado restaurante carioca. O Bangu conseguiu um emprego de mata-mosquito para o fantástico Domingos Da Guia. Eurico Lara, do Grêmio, teve sua transferência no Exército conseguida pelo clube, e foi de Uruguaiana para Porto Alegre. Em 1939, seis anos depois do início do profissionalismo, Gildo Russowisk, dirigente do Internacional, passou a franquear para Tesourinha, garoto frágil aos 18 anos, um quilo de carne e dois litros de leite diariamente, para ele ´´botar corpo“. Bem antes disso, no entanto, um costume largamente praticado iria enriquecer o folclore futebolístico e passaria a praxe que até hoje provoca brigas, inclusive na seleção brasileira. Era gratificação por vitória e empate, e, às vezes, até mesmo por participação em jogo perdido. Cinco mil réis e é o que pagavam os clubes, mimo logo apelidado de ´cachorro`. Dez mil réis era o ´coelho`; 20 mil um ´peru`; 50 mil um ´galo` e 100 mil uma ´vaca`. Até que em 1923, a prática passou a ser chamada de ´bicho`,e que é pago até hoje.
Podiam ser amadores naquela época, mas estavam longe de ingênuos. Ou por outra : alguns eram bem malandros, e como. O próprio Fausto, o Maravilha Negra de que falamos, era espertíssimo. Quem contava era o grande jornalista Mário Filho, que dá o nome ao Maracanã, e era irmão de Nelson Rodrigues :
´´O momento do pênalti é favorável para uma guerrinha de nervos. Fausto e Tinoco, um que parecia estava que estava rindo sempre, e não estava, era um tique que ele tinha, cuspiam na bola, besuntavam-na de cuspo. Chegavam a puxar o cuspo mais grosso , do fundo do peito. Se o quíper era o Joel de Oliveira Monteiro a bola podia ir para cima dele, devagar, que ele não segurava de jeito algum. Antes, porém, Joel de Oliveira Monteiro saía do gol para reclamar ao juiz. Fausto e Tinoco, então, chamavam mais jogadores do Vasco para cuspir na bola“
(Joel de Oliveira Monteiro, do América do Rio, foi o goleiro do Brasil na seleção de 30.)
Mas havia a contrapartida, e nela, como dizia Mário Filho, era o ´quíper` que descontrolava o atacante. Aconteceu com Chiquinho, um goleiro que passou pelo Vasco nos anos 40. Jogavam Flamengo e Vasco, na Gávea, e o juiz apita um pênalti contra o Vasco. Chiquinho desmaia. O juiz, um tal de Pereira Gomes, se assusta. Carrega-o para a beira do campo e chama o médico, o massagista. Domingos da Guia, capitão do Flamengo , reclama : Chiquinho já estava sendo atendido havia três minutos, e nada. Pereira Gomes dá a ordem : o pênalti tem que ser cobrado.
Chiquinho volta a si. Passa a mão na cabeça,pergunta onde está, parece lembrar-se , pois vai para o centro do gol, ainda cambaleando. O juiz vai apitar, Chiquinho gira sobre si mesmo e vai novamente ao chão. O médico toma-lhe o pulso, o massagista esfrega-lhe o ventre, e Chiquinho permanece de olhos fechados, a cabeça caída para o lado.
A torcida e Domingos da Guia protestam, Pereira Gomes já não sabe o que fazer, e então decide: alguém tem que ir para o gol, o pênalti vai ser batido. Resolvem tirar a camisa de Chiquinho para passá-la a um colega, Figliola que recebe ordens do técnico. É difícil remover a camisa do goleiro imóvel, tem que ser feito com cuidado, pois afinal ele pode mesmo estar morrendo.
Tudo pronto, goleiro a postos , juiz vai apitar e… eis que Chiquinho se levanta,tonto, e vai para o meio do gol.
Mário Filho conta:
´´A torcida do Flamengo exige a cobrança do pênalti já e já. Pereira Gomes faz-lhe a vontade. Manda Figliola sair do gol, deixa Chiquinho, só, cai não cai, que dava pena, e apita, um apito forte, para todo mundo ouvir. Pirilo chuta de lado, de leve, para marcar aquele gol não precisava caprichar. E foi o tiro partir que Chiquinho saltar feito um gato e agarrar a bola. Estava mais vivo do que nunca“.