Futebol e Literatura

Jorge Murtinho

Futebol e Literatua

O conceito clássico de drible é mais ou menos esse: parar com a bola à frente do marcador, olhar dividido entre o rosto do adversário, para intuir suas reações, e o gramado, para observar-lhe o movimento dos pés. E aí, na hora precisa, frações de segundos antes do bote, dar o toque, arrancar, surpreender.

O futebol dos dias de hoje, feito de velocidade e marcação, com drástica redução de tempos e espaços, transforma o drible aí de cima em algo cada vez mais raro. Cristiano Ronaldo, Messi e Neymar são muito mais jogadores de soluções inesperadas, e de ótimo controle de bola em velocidade, do que de drible. O mais driblador dos três, no conceito clássico, é Neymar, certamente por causa do nosso jeito de jogar. (Não me lembro de nenhum exímio driblador no futebol alemão. Não está no sangue.)

A diminuição dos tempos e espaços significa que os românticos dribladores da antiga não fariam hoje o que fizeram no passado? Calma. Se o Paulinho do Flamengo foi capaz de destroçar a defesa do Botafogo, na vitória por quatro a zero, imaginem o que não fariam Garrincha e Canhoteiro.

Futebol tem certas curiosidades. Depois da conquista do tricampeonato mundial, o pessoal do Canal 100 pediu ao capitão Carlos Alberto que fizesse três ou quatro minutos de embaixadinhas – eles queriam usar a imagem, sem corte, em um dos instantes iniciais do documentário Brasil bom de bola, dirigido por Carlos Niemeyer. Autor do gol mais bonito da história e talvez o maior lateral-direito de todos os tempos, Carlos Alberto declinou, com a alegação de que era jogador de futebol e não foca amestrada. A cena foi filmada com Marquinhos, mediano armador que passou pelo Fluminense no final dos anos sessenta e começo da década seguinte. Mais recentemente, Pelé afirmou que jamais conseguiu fazer com a bola os malabarismos que Ronaldinho Gaúcho faz. São coisas distintas.

Mas voltemos ao drible. Além de Garrincha e Canhoteiro, o futebol brasileiro sempre teve renomados especialistas no assunto. Julinho, Joel, Dorval, Edu, Rogério, Joãozinho, Eduardo (que inventou o drible da vaca, nome que costuma ser erroneamente atribuído à meia-lua), Júlio César, Denílson. E a partir de agora, a essa lista temos a obrigação de acrescentar o nome de Sérgio Rodrigues, autor de O drible, lançado pela Companhia das Letras.

Muito já se falou sobre a ausência do futebol como tema ou pano de fundo de romances brasileiros, mas há uma geração de escritores virando esse jogo. Michel Laub, gremista que acaba de conquistar a Copa de Literatura Brasileira com seu Diário da queda, usou o futebol em O segundo tempo. André Sant’Anna, torcedor do Fluminense, fez o mesmo em O paraíso é bem bacana – grande livro já citado aqui no blog, no post de 20 de agosto. E agora Sérgio Rodrigues, que eu não sei para qual time torce, publica O drible, romance que tem o futebol como cenário e pelo qual passam bambambãs da imprensa (Mário Filho, Nelson Rodrigues, João Saldanha) e dos gramados, desde Friedenreich até Neymar. Há momentos sublimes, como quando o autor define o estilo de certos craques e fala no “quase dandismo nabokoviano de Didi, Falcão e Zidane”. Na mosca.

O livro também bebe – na verdade, toma porres homéricos – na cultura pop: de forma clara, nos momentos em que cita Michael Jackson, Rick Wakeman, Velvet Underground etc., ou quando o personagem Neto vara noites ouvindo Pink Floyd (Atom heart mother, o disco da vaca, que não tem nada a ver com o drible inventado pelo cruzeirense Eduardo); e de um jeito menos explícito, no nome do duo caipira-hardcore Kopo Deleche & Kopo Derrum, aparentemente tirado de uma das falas do filme Amores brutos, de Alejandro González Iñárritu, ou na situação entre Neto, seu pai Murilo Filho e a bela Lúdi, semelhante ao trágico triângulo de Perdas e danos, de Louis Malle.

O drible é cheio de achados, e o maior deles é a teoria de Murilo Filho de que o futebol brasileiro deve muito de sua evolução ao abismo existente entre a realidade do que acontecia em campo e as narrações de futebol pelo rádio. A tese é um primor e se apoia no “esforço sobre-humano que os jogadores tiveram que fazer para ficar à altura das mentiras que os radialistas contavam”. Genial.

É bastante possível que a literatura brasileira ainda abrigue menos futebol do que seria razoável, pela paixão que o jogo provoca em nós. Mas não dá mais para dizer que estamos no zero a zero. O segundo tempo de Michel Laub, O paraíso é bem bacana de André Sant’Anna e, agora, O drible de Sérgio Rodrigues são belos exemplos de que futebol e literatura não merecem mais ser tratados como água e azeite.

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